domingo, 1 de novembro de 2015

Elogio ao Tempos de Cléo

foto: Lucas Fiorindo
Para falar do solo de Márcia Costa, estreado no dia 19 de Outubro, optei por fugir da prepotência crítica, ou da superficialidade noticiaria somente. O elogio é: uma categoria literária "utilizada também para motivar outras pessoas, aumentar a autoconfiança  ou corrigir um defeito"; gênero literário que me aproprio para escrever sobre o espetáculo "Tempos de Cléo". 

O teatro em 2015 possui um cenário político-cultural relativamente dificultoso, sendo gentil, enquanto muitos formadores de opinião pronunciam uma crise na cultura e na arte, que se dá há anos, ou décadas, talvez séculos. Para uma parte da população, principalmente jovens, ao qual me incluo, a plena condição da circulação, fomento e produção da arte teatral nunca foi uma realidade visível. Para as novas gerações o teatro é uma história saudosista de tempos de vacas gordas. 

E não poderia deixar de mencionar neste elogio as conversas que tive diversas vezes com a atriz e amiga Márcia sobre o assunto. "Em 1990..." datam-se as memórias que Márcia mais compartilha, sempre empenhada em provar o quanto o norte do Paraná (eixo Maringá-Londrina) recebia grandes produções do teatro do mundo inteiro, com apresentações grandiosas, verdadeiras pérolas do imaginário popular teatral. Isso sempre me contagiou pessoalmente.

 foto: Lucas Fiorindo
foto: Lucas Fiorindo
Fazer teatro no interior é a necessidade de resistir em dobro. Se incluir em uma cena teatral orgânica, tradicional, viva de grandes centros envolve também grandes desafios, mas não é igual fazer brotar seu trabalho dentre todas as adversidades de cidades que não possuem formação de público, ou mesmo oportunidades vareadas de financiar, produzir e expor seu trabalho. Por isso, sempre vou me referir a produções de "periferias" dos eixos teatrais com um profundo respeito e admiração. O artista do interior é a terceira parte, o terceiro mundo, terceiro sexo, terceiro olho, terceiro milênio.

Para ler este espetáculo maringaense, faço valer o grande apreço pioneirista que a cidade cultiva. O pioneiro é este que dedica-se a fundar uma conquista comum. "Tempos de Cléo" é pioneiro como primeiro projeto maringaense contemplado pelo PRÊMIO FUNARTE DE TEATRO Miriam Muniz, que finalmente põe a cidade na rota dos financiamentos federais para projetos de teatro. Mérito justificado e equilibrado quando se analisa a capacidade autêntica de cada profissional que compõe o trabalho, todas e todos artistas completos e formados, que somam seus trabalhos na atuação de Márcia.

Historicamente, o teatro de tempos de extremismos e rupturas são marcantes na história da arte. O teatro brasileiro moderno, que surge antes e durante o período de ditadura militar no Brasil, se dedica em subverter a ordem por meio de uma "linguagem subterrânea" que ataca as opressões por meios simbólicos sutis. Grupos como Ói Nois Aqui Travez, Galpão, Teatro Oficina, Latão, Arena se dedicam em suas respectivas pesquisas a este teatro brasileiro essencialmente político, mas não restritivamente materialista! "Tempos de Cléo", ainda que em sua modalidade solo, encaixa-se analogamente nestas referências, sem adentra-las, formando uma critica social marginal personalizada.

foto: Roger Takahashi
Tal personalização, personificação, individualização, entre outros adjetivos me soam claros a partir da opção por um monólogo, feito por uma única atriz e sobretudo a linha de direção e processo de pesquisa cênica dirigido por Gabi Fregoneis, leva Márcia a experimentações performáticas, dispositivos de intervenção urbana, contato pessoal entre a artista e o público errante das praças de Maringá. Processos que desencadearam material para a dramaturgia lógica, política e lúcida que a Carolina Santana criou, juntamente com sua assistência de direção. Tudo dialoga com a vasta experiência  da atriz que trabalha há anos com "produções teatrais artesanais" e o que vou chamar de "teatro de linguagem popular" .

Sérgio Augusto _ dia (mista sobre tecido)
O projeto visual de "Tempos de Cléo" assinado pelo artista plástico Sérgio Augusto é também uma perspectiva a mais para ver a Cléo que tanto inspirou Márcia e o grupo a montar a peça. Pés, chinelos, copos descartáveis de café, o carrinho de supermercado, entre outros símbolos da personagem foram usados por Sérgio  A. em técnica mista, ou superfícies pictóricas alternativas, como o papelão ou a calçada. Os trabalhos do artista para o projeto, formam um interessante intercâmbio artístico. A identidade estética e técnica das peças são relativas às criações atuais do trabalho de Sérgio Augusto.

Fotografia: Sérgio Augusto _ "linhas"

Outra grande participação do projeto é de Cristine Conde como figurinista. Pude acompanhar alguns preciosos momentos da ida de Cristine a Maringá e ver nascer o grande figurino feito de bolsos de calças jeans que a figurinista concebeu para o espetáculo, aprofundando o "senso de realidade" criado pela dramaturgia de Carolina.

Sendo uma peça de rua com ocupação mínima cenográfica, o multifuncional figurino de "Tempos de Cléo" vai tirando dos bolsos os objetos utilizados no decorrer do espetáculo totalizando também toda a cena na atuação de Márcia.



Cada um dos mais de dez profissionais que compõe a ficha técnica do espetáculo são responsáveis por uma bela composição cênica solo. Destaque para o trabalho de Rachel Coelho, produtora, como figura central para a aprovação e produção profissional do projeto. Rachel e Márcia é uma dupla de outros trabalhos, já fizeram juntas, por exemplo, o "O Xetá", "La Trapera" e o projeto de formação e capacitação de artistas - FOCA, que trouxe profissionais em teatro de diferentes estados para Maringá. Dentre as oficinas e ministrantes trazidos por Rachel para a cidade, a participação da atriz Tânia Farias e Roberto Corbo do Ói Nóiz Aqui Traveiz -- que estiveram na cidade em outras situações também no mesmo ano, engrossa o caldo de presenças que contribuíram (i)materialmente para composição do trabalho.

Já por volta de 1500 em "Elogio a Loucura", Erasmo de Roterdã defende um outro olhar sobre a então abominada loucura, contestando antigas noções de realidade e moral. Ensaio que dá vasão à liberdade de personalidade e expressão própria para os tempos e seus indivíduos. A modernidade avança e aos poucos as ortodoxias, os dogmas e as tradições são dissolvidas, mas a vida em 2015 ainda não é livre e desimpedida. "Elogio aos Errantes" de Paola Berenstein Jacques protesta em 2012 a figura do errante, que condensa todas as experiências de pessoas que vivem marginalmente na ordem social, sendo essas pessoas moradores e moradoras de rua, trabalhadores e trabalhadoras do sexo, dependentes químicos e portadores de transtornos psiquiátricos. Pessoas que fazem da vida uma atividade intensa e interminável de resistência

Tempos de Cléo é um por si só elogio a essa personagem tão potente do imaginário maringaense. É a sensibilidade política do projeto de levar a figura da Cléo para o centro das atenções e fazer história a partir dela e sobre ela. Cléo faz parte da nossa memória marginal que é apagada sorrateiramente. Cléo é uma grande inspiração e não duvido que nós temos inveja dela mesmo.

                
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2 comentários:

  1. "Tempos de Cléo" surpreende ao mesmo tempo que choca. Márcia Costa é a Cléo. Por ela se acredita em opostos: a Cléo é ficção, é pessoa e situação que não existem ou que não queremos ver. Mas sabemos, a Cléo existe (as Cléos existem) e quando a Márcia sai de cena a Cléo real continua lá na UEM com seus aforismos e sem microfone.

    Vinicius, já li vários outros textos seus. Este é o segundo, no entanto, em qual tenho a grata felicidade em não reconhecê-lo. Você está escrevendo muito bem, diferentemente, dos anteriores. Seu discorrer está interessante; a sobriedade, precisa. Parabéns!

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    1. Obrigado pelo comentário, Flauzino. Bom poder trocar contigo, abraço.

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