quarta-feira, 2 de setembro de 2015

Sobre ser ou não ser o B

"Se pagasse o que eu pago não seria tão liberto. A pena que não nego é o suor que te sustenta"

Ano passado fui convidado pelo Gustavo Hermsdorff para participar de um projeto de montagem do texto "Um Erro Que Vive" de sua autoria, que haveria de se tornar o espetáculo "Florescerro",  do Grupo de Pesquisa Teatral AJNA, atualmente formado por Lucas Fiorindo, Rachel Coelho, Ana Paula Siste, Gustavo Hermsdorff, Márcia Costa e eu.

Eu que havia trabalhado somente com performance, live art, me deparei com uma oportunidade interessante de finalmente experimentar o teatro, com um grupo disposto à pesquisa teatral na cidade de Maringá. A participação da maioria dos integrantes no Núcleo de Dramaturgia do SESI, em Maringá, foi decisivo na escolha da linguagem que iriamos desenvolver nossa pesquisa, que chamarei aprioristicamente de teatro pós-dramático.

O texto de Hermsdorff é o que Roberto Alvim conceitua como "monólogos articulados", proposta que recompõe a relação entre as entidades da cena, substituindo as formas e costumes do real/cotidiano, provocando inevitavelmente a necessidade de construir uma nova experiência. A dramaturgia sinaliza a superação do que entende-se como personagem no teatro dramático, o que dá lugar aos "modos de subjetivação", nomeados como A e B.

Em "Um Erro Que Vive" a palavra (ou signo) "não encontra um referencial imediato na realidade, se transforma em som-gestacional: prepara um novo caminho para um novo signo, como se provesse uma criança ou uma mudinha de planta", como coloca a crítica de Julia Raiz sobre o espetáculo. Contudo, as palavras do texto não são vazias, nem aleatórias. Acontece o que chamo aqui de polarização de signos primos, que para a atuação se torna a identificação das qualidades comuns de "personas" equivalentes: a mãe, o papa, a presidente, o ditador, a instituição, para B e a criança, o trabalhador, o natural, o oprimido, para A.

E é sobre B que me refiro neste texto. Atuar em Florescerro para mim foi uma das mais profundas e radicais experiências de toda minha vida, sem nenhum exagero. E afirmo isso tanto na perspectiva que fazer teatro de uma maneira geral é, com certeza, muito transformador, mas sobretudo essa experiência em especial me toca pelo fato de toda a pesquisa estar completamente relacionada com aquilo que acredito em arte, em filosofia, em estética, em trabalho e na própria vida, mesmo por que acredito que esse trabalho tenha me construído, como parte da minha formação pessoal e profissional e tenho certeza que carregarei comigo essa experiência por toda a vida.



Stanislavski, em sua metodologia de preparação do ator ensina a composição de personagens pelas características pessoais dos atores e atrizes, o que geralmente se dá ou por empatia ou por oposição. E mesmo com o fato deste conceito ser advindo da teoria do teatro dramático, acredito que essa reflexão caiba também em outros segmentos do teatro e também em Florescerro e é interessante para entender minha relação com B.

B para mim surge numa relação de empatia, acredito, por mais que essa afirmação seja perigosa e cruel. Mesmo eu que sempre busquei o desenvolvimento das minhas virtudes, da minha razão, da minha ética, confesso que me identifico deveras com o espectro yang (na qualidade mais mundana, presunçosa, opressora e superior) desse "modo de subjetivação". E, acredito também que nos estudos de Alfred Adler (psicólogo) sobre, o denominado "Complexo de Superioridade"  se encontra a chave de entendimento para a questão.

Na psicologia, o "Complexo de Superioridade" está diretamente ligado ao "Complexo de Inferioridade", sendo que nas práticas terapêuticas o sujeito diagnosticado com determinado complexo é apontado à sua qualidade inversa de caráter, seja ele superior, seja inferior. Isso por que Adler defende que o "complexo de inferioridade é intrínseco à natureza humana, justamente pela fragilidade da criança perante o ambiente que a circunda", seu recorte social. "Sua  [a criança] extrema dependência dos familiares e impossibilidade de várias coisas acarretavam dito complexo", explica.

Em contrapartida, o "Complexo de Superioridade" surge como mecanismo de defesa, onde o inferiorizado "fantasia" sua vantagem em relação aos demais como estratégia inconsciente de compensação. Uma pessoa pode conviver com o binômio "inferioridade-superioridade" por toda a vida, em alguns casos esse complexo é característica principal de um indivíduo.

Gostaria de colocar também, principalmente como defensor da causa LGBT e de minorias políticas em geral, que não desmereço a "fantasia de superioridade". Acredito que para sobreviver à esta cultura civil ocidental-globalizada os mecanismos de defesa são ferramentas muito dignas e não as condeno. A prática terapêutica para o tratamento dos complexos de inferioridade/superioridade envolve uma série de questionamentos pessoais e a primeira pergunta do questionário é:  No decorrer de seu desenvolvimento foi estimulado ou sempre motivo de ironia ou gozação? 



Desde muito novo eu sempre fui apontado pejorativamente como "o viado", principalmente no ambiente escolar. No decorrer dos anos as violências (que alguns chamam de apelido) criativamente se transformaram mas nunca deixaram de acontecer, nem quando saí do ambiente escolar. Em contrapartida eu tinha altas notas e uma capacidade aguçada de comunicação que sempre foram meus artifícios de vantagem. O "Complexo de Superioridade" me foi e é ferramenta até os dias de hoje e não poderia deixar de pensar nisso ao falar de B.

André Fabrício, que interpretou A, não compõe mais o grupo mas aprendi muito com ele neste processo e não poderia deixar de citá-lo e agradece-lo. Sua sensibilidade nítida e suas emoções a flor da pele, sua opinião política comunista-anarquista, sobretudo sua bondade contrastou e inclusive colidiu com a minha personalidade durante a maior parte do processo. No começo eu havia pensado em abandonar o trabalho, mas não o fiz, em Abril deste ano André fez¹. 


B não é o mal nem o bem. B é o acumulo do mundo. B é o "mal necessário", que se concentra mais em alguns do que em outros, felizmente, mas que está em todas nós.

Florescerro abrirá o Festival de Teatro de Campo Mourão, dia 25 de Setembro, em uma nova fase. Agora com o Lucas Fiorindo interpretando A, eu continuo sendo e não sendo o B.

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 1 - A saída de André do grupo não se dá necessariamente pelas vias do processo, mas por motivos pessoais, segundo ele mesmo.

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