Do início veio um ovo cozido. Assim começo uma reflexão sobre o Primeiro Ensaio Sobre a Retórica, solo de Anderson do Carmo, performado no Memorial Meyer Filho, quinta e sexta, penúltima semana do mês de Julho, 2016.
Minhas primeiras leituras sobre o trabalho começaram a partir do convite virtual para a apresentação. A camiseta cinza com duas sereias estampadas, calça, meia, tênis de esporte, a característica corporal e facial, enfim, todo o arranjo visual me despertou desinteresse a priori. Interesse esse, perdido por conta do tratamento estético visual dos trabalhos cênicos contemporâneos, desse ator cotidianamente apresentável. Preciosismo meu? Saudosismo? Insisto, sem me delongar.
Eu, que tenho certo prediletismo assumido e tendência à estimar obras de cunho espetacular, fantástico, alegórico, etc, me vi instigado a assistir Anderson do Carmo não pela empatia visual e conceitual da sua proposta, somente. Mas pelo fato de conhecer minimamente o bailarino e saber da sua relação com a escrita sobre dança, seu caráter crítico sobre o movimento, que pude observar através do projeto Múltiplas Escritas - coordenado pelo próprio, parte do Festival Internacional Múltipla Dança. E também pela oportunidade de entrevista-lo para um trabalho acadêmico, onde o conheci como mestrando do ppgt udesc. Então fui.
Pensamento Paralelo
A assimilação vale também para as cênicas. Não é raro uma peça contemporânea cair no abismo que o conceitualismo e a nova ideia de novo cavam, e isso está mais presente em dança contemporânea do que os próprios bailarinos e bailarinas, muitas vezes. Mas também não é impossível criar, produzir arte, sob tais consignas deste tempo. Nem está distante a figura original do artista, das obras de artes potentes e transformadoras, pelo contrário, o que expõe-se de mais significativo em termos autorais está na realidade das condições do artista, na assunção da própria poética, nas imagens mais regionais, no universo mais particular.
A busca do tema e a pesquisa metodológica da obra de arte precisa ser o que move o artista, só pode estar ligado a missão nesta encarnação, ouso profetizar. Se destacam os que acessam propriedades mais sensíveis da experiência. Cavalos e Primeiro Ensaio Sobre a Retórica estão em níveis diferentes e distantes dessa jornada.
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Em sequência do primeiro ato da sua dança, cuspir um ovo cozido, o bailarino utiliza um recurso vocal (que podemos chamar grammelot) como fonte do seu movimento, criando um fluxo rítmico para a performance, que vai suprir o espaço que seria da música e do enredo no balé clássico. Cria-se o discurso da retórica: o ímpeto científico em movimento. Uma expressão que comunica por si própria, é esvaziada do seu corpo significativo, apresenta-se como estrutura desnuda do ato de pensar em dança. Em momentos faz deslocar a discussão sobre o tópico dança para o tópico pensamento, possui uma capacidade universalizada de catarse.
A voz, como corpo energético indagativo, então, se torna agente protagonista do projeto de dança, ganha espaço em detrimento da presença corporal, vezes. O corpo como suporte de um espírito pensante, naturalmente filosófico. Outro aspecto, a voz é grave, porém nem tanto masculina, forja a empostação barítona. A voz transita suavemente entre o falado e o cantado. Ora apareciam palavras completas em inglês, cômico. Não é foneticamente parente lusófona, nem latina, é anglo-saxônica, britânica, greca, germânica. Só é possível filosofar em alemão?
Interesso-me pelos movimentos e pela investigação, uma meta-relação, paradoxo em arte e filosofia. Pareceu estranho observar os risos que dispararam os outros espectadores da performance, que provavelmente eram pessoas que também conheciam Anderson, provavelmente mais que eu, e que não se conteram em ver o amigo exercitando movimentos absurdamente reais e próprios, uma verdadeira ação-física. Performance. O contemporâneo, nítido. Tanto, que provou fazer uns rir, outro se calar, outro se constranger, outro se entediar, seja o que for, provoca.
Uma questão que não passa despercebido é a identidade e expressão de gênero do bailarino. Suas belas unhas pontudas, o tratamento delicado de sua franja, toda sua sensualidade feminina instintiva aflora. Com certeza, queer. Isso está em seu movimento, na sua presença, na sua postura e na relação geral de comportamento. Politicamente vulgar.
No decorrer e ao final, cada elemento imagético, como as sereias, as pérolas, a purpurina e o próprio ovo cozido, foi tecendo uma fina relação poética para o ensaio. Anderson me deu no final aquilo que buscava desde o início. Comeu o ovo que cuspiu, se alimentou. Costurou cada ruptura que suas ações e seus objetos traçaram no espaço pela sua ocupação. Justificou. Suas folhas de papel, seu colar de pérolas, seu saco pérolas pubianas e sua purpurina anal, sua garrafa de água também é elemento sonoro, de movimento útil, se hidratou, seus papéis são citações de trabalhos acadêmicos (em dança?), seu celular carregando faz a trilha sonora da performance, não me lembro a canção, só que lembro que termina com: amor.
A busca do tema e a pesquisa metodológica da obra de arte precisa ser o que move o artista, só pode estar ligado a missão nesta encarnação, ouso profetizar. Se destacam os que acessam propriedades mais sensíveis da experiência. Cavalos e Primeiro Ensaio Sobre a Retórica estão em níveis diferentes e distantes dessa jornada.
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Em sequência do primeiro ato da sua dança, cuspir um ovo cozido, o bailarino utiliza um recurso vocal (que podemos chamar grammelot) como fonte do seu movimento, criando um fluxo rítmico para a performance, que vai suprir o espaço que seria da música e do enredo no balé clássico. Cria-se o discurso da retórica: o ímpeto científico em movimento. Uma expressão que comunica por si própria, é esvaziada do seu corpo significativo, apresenta-se como estrutura desnuda do ato de pensar em dança. Em momentos faz deslocar a discussão sobre o tópico dança para o tópico pensamento, possui uma capacidade universalizada de catarse.
A voz, como corpo energético indagativo, então, se torna agente protagonista do projeto de dança, ganha espaço em detrimento da presença corporal, vezes. O corpo como suporte de um espírito pensante, naturalmente filosófico. Outro aspecto, a voz é grave, porém nem tanto masculina, forja a empostação barítona. A voz transita suavemente entre o falado e o cantado. Ora apareciam palavras completas em inglês, cômico. Não é foneticamente parente lusófona, nem latina, é anglo-saxônica, britânica, greca, germânica. Só é possível filosofar em alemão?
Visível uma essencialidade de produção teatral neste solo em dança, é revisitado pela expressão teatral. Transitoriedade entre linguagens e gêneros. Dança contemporânea.
Uma questão que não passa despercebido é a identidade e expressão de gênero do bailarino. Suas belas unhas pontudas, o tratamento delicado de sua franja, toda sua sensualidade feminina instintiva aflora. Com certeza, queer. Isso está em seu movimento, na sua presença, na sua postura e na relação geral de comportamento. Politicamente vulgar.
Vejo a performance como uma maneira de se discutir a acadêmia e a arte, o pensamento e a dança, corpo, mente e sexo.
A vontade que tive de escrever este Primeiro Ensaio Sobre a Crítica em Dança, realmente meu primeiro artigo sobre um espetáculo de dança contemporânea, foi incontida, por ser a possibilidade de esboçar um estudo do estudo dança, as metalinguagens me interessam, o hibridismo, hermafrodita, mágico, deusa da filosofia, sereia da retórica. Alquimia de poesia e ciência, espírito e razão. Os movimentos de Anderson cortam a substância do espaço com uma intuição aguçada, ritual, prestidigitação. Chamaria atenção para o tratamento do olhar e o contato com os espectadores presentes (que é algo novo para o ensaio, penso), a presença pode ganhar outros níveis, globalidade, holismo, sem perder e adentrando o relaxamento e o prazer do jogo já conquistado.
foto: Memorial Meyer Filho |
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