terça-feira, 26 de julho de 2016

Primeiro Ensaio Sobre a Crítica em Dança

foto: Memorial Meyer Filho
Do início veio um ovo cozido. Assim começo uma reflexão sobre o Primeiro Ensaio Sobre a Retórica, solo de Anderson do Carmo, performado no Memorial Meyer Filho, quinta e sexta, penúltima semana do mês de Julho, 2016.

Minhas primeiras leituras sobre o trabalho começaram a partir do convite virtual para a apresentação. A camiseta cinza com duas sereias estampadas, calça, meia, tênis de esporte, a característica corporal e facial, enfim, todo o arranjo visual me despertou desinteresse a priori. Interesse esse, perdido por conta do tratamento estético visual dos trabalhos cênicos contemporâneos, desse ator cotidianamente apresentável. Preciosismo meu? Saudosismo? Insisto, sem me delongar. 

Eu, que tenho certo prediletismo assumido e tendência à estimar obras de cunho espetacular, fantástico, alegórico, etc, me vi instigado a assistir Anderson do Carmo não pela empatia visual e conceitual da sua proposta, somente. Mas pelo fato de conhecer minimamente o bailarino e saber da sua relação com a escrita sobre dança, seu caráter crítico sobre o movimento, que pude observar através do projeto Múltiplas Escritas - coordenado pelo próprio, parte do Festival Internacional Múltipla Dança. E também pela oportunidade de entrevista-lo para um trabalho acadêmico, onde o conheci como mestrando do ppgt udesc. Então fui. 

Pensamento Paralelo 

No prédio do Memorial, ao lado, na Galeria Pedro Paulo Vechietti, pudi visitar Cavalos minutos antes da performance. A exposição de Giba Duarte é pequena, simples, porém multimídia. Cavalos tem uma poética cotidiana ilhoa. Cavalos, para quem vive nestas terras brasileiras e suas cidades, é um signo presente, agente de discussão, como tema me parece razoável e feliz. A exposição conta também de uma estrutura expositiva daquilo que se tem de mais contemporâneo nas produções ordinárias; posso citar reprodução em video, em televisão, em telas grandes e pequenas, na horizontal e na vertical, entre outros estratagemas táticos do ramo. Técnicas mistas também são as prediletas e aqui está presente. Cavalos é um bom representante disso que se acumula, subentendendo a nova velha fórmula e condição de arte contemporânea, mas que não constitui-se no mesmo patamar das pesquisas e experiências inovadoras que superam os limites do moderno, desde as últimas décadas do milênio passado, por perder no quesito inovação. Cavalos compõe para as artes visuais, neste contexto, como uma sombra, um eco, um espasmo, no quesito de pesquisa em arte.

Giba Duarte
A assimilação vale também para as cênicas. Não é raro uma peça contemporânea cair no abismo que o conceitualismo e a nova ideia de novo cavam, e isso está mais presente em dança contemporânea do que os próprios bailarinos e bailarinas, muitas vezes. Mas também não é impossível criar, produzir arte, sob tais consignas deste tempo. Nem está distante a figura original do artista, das obras de artes potentes e transformadoras, pelo contrário, o que expõe-se de mais significativo em termos autorais está na realidade das condições do artista, na assunção da própria poética, nas imagens mais regionais, no universo mais particular.

A busca do tema e a pesquisa metodológica da obra de arte precisa ser o que move o artista, só pode estar ligado a missão nesta encarnação, ouso profetizar. Se destacam os que acessam propriedades mais sensíveis da experiência. Cavalos e Primeiro Ensaio Sobre a Retórica estão em níveis diferentes e distantes dessa jornada.
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Em sequência do primeiro ato da sua dança, cuspir um ovo cozido, o bailarino utiliza um recurso vocal (que podemos chamar grammelot) como fonte do seu movimento, criando um fluxo rítmico para a performance, que vai suprir o espaço que seria da música e do enredo no balé clássico. Cria-se o discurso da retórica: o ímpeto científico em movimento. Uma expressão que comunica por si própria, é esvaziada do seu corpo significativo, apresenta-se como estrutura desnuda do ato de pensar em dança. Em momentos faz deslocar a discussão sobre o tópico dança para o tópico pensamento, possui uma capacidade universalizada de catarse.

A voz, como corpo energético indagativo, então, se torna agente protagonista do projeto de dança, ganha espaço em detrimento da presença corporal, vezes. O corpo como suporte de um espírito pensante, naturalmente filosófico. Outro aspecto, a voz é grave, porém nem tanto masculina, forja a empostação barítona. A voz transita suavemente entre o falado e o cantado. Ora apareciam palavras completas em inglês, cômico. Não é foneticamente parente lusófona, nem latina, é anglo-saxônica, britânica, greca, germânica. Só é possível filosofar em alemão?

Visível uma essencialidade de produção teatral neste solo em dança, é revisitado pela expressão teatral. Transitoriedade entre linguagens e gêneros. Dança contemporânea.

Interesso-me pelos movimentos e pela investigação, uma meta-relação, paradoxo em arte e filosofia. Pareceu estranho observar os risos que dispararam os outros espectadores da performance, que provavelmente eram pessoas que também conheciam Anderson, provavelmente mais que eu, e que não se conteram em ver o amigo exercitando movimentos absurdamente reais e próprios, uma verdadeira ação-física. Performance. O contemporâneo, nítido. Tanto, que provou fazer uns rir, outro se calar, outro se constranger, outro se entediar, seja o que for, provoca.

Uma questão que não passa despercebido é a identidade e expressão de gênero do bailarino. Suas belas unhas pontudas, o tratamento delicado de sua franja, toda sua sensualidade feminina instintiva aflora. Com certeza, queer. Isso está em seu movimento, na sua presença, na sua postura e na relação geral de comportamento. Politicamente vulgar.

Vejo a performance como uma maneira de se discutir a acadêmia e a arte, o pensamento e a dança, corpo, mente e sexo.

A vontade que tive de escrever este Primeiro Ensaio Sobre a Crítica em Dança, realmente meu primeiro artigo sobre um espetáculo de dança contemporânea, foi incontida, por ser a possibilidade de esboçar um estudo do estudo dança, as metalinguagens me interessam, o hibridismo, hermafrodita, mágico, deusa da filosofia, sereia da retórica. Alquimia de poesia e ciência, espírito e razão. Os movimentos de Anderson cortam a substância do espaço com uma intuição aguçada, ritual, prestidigitação. Chamaria atenção para o tratamento do olhar e o contato com os espectadores presentes (que é algo novo para o ensaio, penso), a presença pode ganhar outros níveis, globalidade, holismo, sem perder e adentrando o relaxamento e o prazer do jogo já conquistado. 

No decorrer e ao final, cada elemento imagético, como as sereias, as pérolas, a purpurina e o próprio ovo cozido, foi tecendo uma fina relação poética para o ensaio. Anderson me deu no final aquilo que buscava desde o início. Comeu o ovo que cuspiu, se alimentou. Costurou cada ruptura que suas ações e seus objetos traçaram no espaço pela sua ocupação. Justificou. Suas folhas de papel, seu colar de pérolas, seu saco pérolas pubianas e sua purpurina anal, sua garrafa de água também é elemento sonoro, de movimento útil, se hidratou, seus papéis são citações de trabalhos acadêmicos (em dança?), seu celular carregando faz a trilha sonora da performance, não me lembro a canção, só que lembro que termina com: amor.

foto: Memorial Meyer Filho

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